Uma história para contar

Em um dos momentos da Faculdade de Jornalismo ouvi de um professor que mais importante do que o fato é o relato. Com as devidas ressalvas, construir uma narrativa é reescrever uma história a partir das circunstâncias,  das nossas crenças e perspectivas situadas. Desde que inauguramos a Casinha Latina, em 2017, na Ilha de Boipeba (Bahia), iniciamos uma aventura pelo desconhecido e escolhemos um caminho.  É sempre muito desafiador refletir sobre um processo quando ele ainda está acontecendo porque, mesmo na direção do movimento, nunca deixamos de lado a imprevisibilidade dos acontecimentos. De repente, o óleo no mar. De repente, uma pandemia. De repente, uma guerra. De repente, tão de repente, o futuro que nos vira pelo presente. O desafio desse espaço virtual é poder contar a nossa história enquanto ela acontece. Escrevê-la a partir das nossas verdades e das nossas escolhas.

Temos, no Brasil, a tradição do esquecimento. Não aprendemos, ao longo dos séculos, a construir memória. As coisas acontecem, se perdem e são esquecidas – tanto as mais traumáticas quanto as experiências mais potentes e transformadoras. Estamos construindo uma experiência em Boipeba e ela precisa de um lugar para, por assim dizer, fazer morada. Não queremos nos esquecer, não temos o direito de esquecer. Queremos lembrar dos amores, do brilho, de cada noite de trabalho, da diversão, da festa, das nossas dores, dos tapas, das críticas, da raiva, das fobias, das trans, dos amigos gays, das amigas lésbicas, bis, da chegadas e despedidas, das pessoas pretas, dos shows, das conversas, dos bate-bocas, dos problemas – queremos falar da nossa vida como protagonistas dela. É poder, na nossa pequenez e existindo nesse tempo-espaço, dizer que somos importantes, compreendendo que a nossa caminhada muda o rumo de todos os ventos. Nesses últimos anos, estamos soprando forte e, por isso, chegamos aqui: o projeto Primavera na Ilha e seu primeiro produto: o site/museu/memorial Ilha da Diversidade. 

Como numa tempestade de verão ou numa chuva fina e duradoura de inverno, somos água, fluindo, escorrendo, ocupando, semeando. É desse lugar que saltamos em direção ao próximo ato – que será qualquer um porque nossa imaginação é infinita. Assim, a Primavera na Ilha é uma celebração do que foi, do que é e do que será. É o território para que a gente se veja, seja visto, articule, crie. É a realização de desejos, é também a possibilidade de desdobramentos bonitos nesse novo amanhã. É fundamentalmente o compromisso com a gente porque, agora, por fim, tomamos as rédeas e a condução: nada sobre nós sem nós. 

Um museu, um documento, um site, não importa a categoria. Estamos criando e queremos que essa experiência, acumulada e potente, se alastre. É possível fazer com pouco, é possível transformar as bases pelo diálogo, é possível construir e dar espaços, com dignidade para enfrentar as trevas porque somos muito maiores. Enquanto existir o amor que lançamos, nós já vencemos. A Ilha da Diversidade é nossa vitória. Conquistaremos todas as outras. 

Axé!

Gilvan Reis